segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

O CORPO E A ALMA EM UM PROCESSO DE ADOECIMENTO

Ana Helena Stein C. Souto

“O mundo é imenso, e não há uma única teoria que consiga explicar tudo.”
Jung

O assunto que pretendo abordar é a doença e o processo de adoecer. Para tanto, como base, foi utilizada a teoria de Jung quanto à formação de símbolos, a formação de complexos e a expressão psique-soma. Através das autoras Denise Gimenez Ramos (1994), que escreve sobre a psicossomática à luz da psicologia analítica, e Themis Regina Winter (1997), que fala sobre o homem psicossomático e a criação de uma metapsicossomática, pretendo levantar algumas questões que a meu ver são de grande importância.
Primeiramente precisamos entender o que é a doença, o que é processo de adoecer. E para tanto, apoiando-se nos estudos de Denise Gimenez Ramos (1994), a doença será vista, neste passo inicial, em um aspecto histórico.


UM POUCO DE HISTÓRIA

Segundo Ramos (1994), o homem moderno está imposto por muitas estruturas conscientes que o afastam de sua origem: o Self. Diferentemente do homem primitivo, que era regido por forças naturais e procurava suas respostas no poder divino, no mito, o homem moderno, segundo Jung (apud Gimenez, 1994, p. 15), tem uma ligação psicológica com o objeto de forma a fundir-se nele e não conseguir distinguir-se. Para o homem primitivo, a doença era relacionada à violação de um tabu ou uma ofensa aos deuses, e a cura consistia no “restabelecimento da ligação do homem com o divino através do arrependimento e sacrifício” (GIMENEZ, 1994,p. 15). Assim, o curador, o xamã, por exemplo, tinha por principal função atender à duas necessidades do homem primitivo: a busca espiritual e a saúde, de forma a buscar a harmonia entre psique e natureza. Segundo Gimenez (1994), “[...] enquanto o xamã retoma com o paciente os valores da cultura através do mito coletivo, o psicoterapeuta moderno procura no passado inconsciente do paciente seu mito pessoal” (p. 16).
Desta forma, a autora coloca que a grande diferença entre o homem moderno e o primitivo está na capacidade daquele de dissociar-se da natureza, da religião, e da importância destinada à ciência e à tecnologia que ele passou a dar em lugar aos deuses e à natureza. Jung (1964) coloca que

O homem moderno não entende o quanto o seu “racionalismo” (que lhe destruiu a capacidade para reagir a idéias e símbolos numinosos) o deixou à mercê do “submundo” psíquico. Libertou-se das “superstições” (ou pelo menos pensa tê-lo feito), mas neste processo perdeu seus valores espirituais em escala positivamente alarmante. Suas tradições morais e espirituais desintegraram-se e, por isto, paga agora um alto preço em termos de desorientação e dissociação universais (p. 94).

Platão (apud GIMENEZ, 1994, p. 18) já afirmara que o grande erro no tratamento do corpo humano é que o médico separa a alma do corpo. Esta separação, segundo Gimenez (1994), começou com os gregos a partir da técnica de observar, analisar, deduzir e sintetizar. A diferença se encontra no sentido de que os gregos não buscavam dominar e mudar a natureza, mas conhecê-la. Com a separação de religião e ciência, de razão e fé, a autora coloca que há também uma separação cada vez maior entre conteúdos inconscientes e o ego.
Foi em meados do século XIX, com o modelo romântico do que era a doença, que surgiu a psicossomática. Segundo Georges Gusdorf (apud GIMENEZ, 1994, p. 22), neste modelo, “As doenças d’alma podem ser escritas no organismo sob uma aparência material e, reciprocamente, os distúrbios corporais poder ter corolários dentro do espaço mental ”. Este autor ainda colocava que a interpretação do sintoma deveria surgir da hipótese de este ser um símbolo de uma situação, onde se deveria usar um remédio que atingisse um nível global. Gimenez (1994) afirma que “O homem doente era considerado na sua relação consigo, com os outros e com o mundo, integrando-se arte, ciência e religião.” (p. 22)
No final do século XIX surge, em contrapartida à visão romântica, o modelo biomédico. Gimenez (1994) aponta que a doença passa a ser um desvio do normal, um desequilíbrio não natural, como anormalidades biológicas. A fonte de conhecimento acerca da doença, neste contexto, passou a ser a experimentação científica reduzindo a mesma ao conhecimento laboratorial, desconsiderando aspectos pessoais, individuais, e caminhando cada vez mais para universalização de suas causas. “Os sinais não mais eram vistos como símbolos de uma doença, mas sim como manifestações externas de uma doença” (GIMENEZ, 1994, p. 24).
Assim, para concluir este pequeno esclarecimento histórico, Gimenez (1994) coloca que

[...] ao entrarmos no século XIX com uma visão fragmentada do homem, a ênfase ao estudarmos a doença, é na compartimentalização, objetividade, concretude e padronização. O mito determinante é aquele que nos diz que o homem pode dissecar, manipular e dominar a natureza. Esses fatores têm modelado nosso conceito de doença e da relação mente- corpo, fundamentando inclusive o conceito de psicossomática (p. 25).

A DOENÇA SEGUNDO O PENSAMENTO ANALÍTICO E O NÃO ANALÍTICO

Como vimos, de forma simplificada, a doença sofreu uma série de mudanças ao longo da história e, em conseqüência, a maneira como a vemos e a tratamos. Atualmente, assim como Platão afirmou em sua época, o médico separa a alma do corpo, enfatizando os cuidados sobre os sintomas, ou melhor, na eliminação deles. No entanto, quando mudamos o foco do biológico para o psicológico, também nos deparamos muitas vezes com generalizações, onde o psicólogo se importa em trabalhar essencialmente da alma, alimentando aquele velho discurso do senso comum de que “tudo é psicológico”. Pode-se dizer que há uma generalização por parte dos dois lados, em determinados casos. A partir disso, vamos entender um pouco sobre o que as autoras nos falam a respeito do estudo que envolve a psique e o soma, a mente e o corpo.
Para Jung (2003), um complexo diz respeito a um aglomerado de associações de ordem psicológica que advém de um caráter altamente doloroso. “Trata-se simplesmente de um assunto importante, tudo que é acentuadamente sentido torna-se difícil de ser abordado, porque esses conteúdos encontram-se, de uma forma ou outra, ligados com reações fisiológicas [...]” (p. 66). Partindo dessa idéia, Gimenez (1994) afirma que, para Jung, o efeito de um complexo é o de poder produzir uma doença, cujos sintomas são de natureza somática ou psíquica. Desta forma, “[...] devido à forte carga emocional dos complexos, eles tanto podem ter um efeito positivo e motivante, como provocar perturbações psiconeuróricas na vida psíquica.” (HARK, 2000). O complexo, segundo Jung (2003), chega a apresentar uma espécie de outro corpo, com determinada personalidade e um ego. Os complexos são “personalidades parciais ou fragmentárias”(JUNG, 2003, p. 68). Neste sentido, o ego é uma espécie de complexo formado por uma percepção do nosso corpo e pelos registros da nossa memória.
Gimenez (1994) aponta que a consciência corporal é apenas a percepção de uma parte do corpo total, do self corpóreo e, assim, conhecemos apenas uma parte dele e não sua totalidade. Essa parte conhecida do corpo vem à consciência sob a forma dos símbolos, e o desenvolvimento do ego, segundo Gimenez (1994), depende da capacidade de absorver estes símbolos e entrar cada vez mais em contato com o self através deles. Jung (apud GIMENEZ, 1994) coloca que o símbolo é um corpo vivo, que ao longo da vida se aprofunda mais no inconsciente. “Quanto mais arcaico e profundo o símbolo for, isto é, quanto mais fisiológico, mais ele é coletivo, universal e material”(JUNG, apud GIMENEZ, 1994, p. 43). Por esse caminho, Gimenez (1994) questiona se a doença física ou psíquica expressa conteúdos inconscientes, coletivos. Pode-se dizer que a doença expressa um conteúdo arcaico, a diferença está na maneira como essa doença expressa estes conteúdos. A autora coloca que psicóticos expressam de uma maneira abstrata, enquanto que a doença corpórea manifesta-se de uma maneira mais concreta.
Gimenez (1994) chama a atenção para o fato de que “um paciente somatizar não significa que ele não simbolize, mas, sim, que essa simbologia acontece no plano somático”(p. 44). O paciente somático desliga os sintomas orgânicos de algum sentimento conflitivo, de um complexo. Segundo a autora, a memória emocional se perde no corpo e reaparece em situações atuais que retomam o conflito gerador da cisão entre a situação e o afeto.
A linguagem corporal usada na doença, para Gimenez (1994), é mais primitiva, e remete à linguagem da infância, não verbal, uma linguagem arcaica onde o corpo fala. O sintoma, assim, é uma representação simbólica da ruptura Ego- Self, que pode ser corporal ou psíquica. Para Jung (apud GIMENEZ, 1994), o homem é, externamente, um corpo material, e internamente uma série de imagens das atividades vitais. O símbolo, neste aspecto, informa os acontecimentos orgânicos. A autora informa que, para Jung, “o inconsciente só pode ser experimentado no corpo e que este é exclusivamente a manifestação externa no self. ”(p. 49). Finalizando, ela coloca que

O símbolo é a expressão da percepção do fenômeno psique- corpo, feita através da percepção das alterações fisiológicas e das imagens referentes, sincronicamente. Um complexo tem sempre uma expressão simbólica corpórea, através da qual podemos ter a chave para a compreensão da doença. Neste caso, o símbolo aponta uma disfunção, um desvio que precisa ser corrigido, quando a relaçaõ Ego- Self fica alterada (GIMENEZ, 1994,p. 51).

É importante ainda ressaltar que a doença, como representação simbólica de algum complexo, tem uma expressão corpórea e psíquica de forma simultânea, sincrônica.
Segundo Winter (1997), sensações e percepções que estejam alheias à representações psíquicas, podem retornar ao corpo de maneira a sobrecarregá-lo. Para a autora, “o momento de adoecer dá-se nessa ruptura entre o que se percebe como sensação ou tensão corporal e o respaldo psíquico que possa traçar o reconhecimento, ligar a sensação a algo nomeável reconhecido.” (WINTER, 1997, p. 34). Ou seja, no adoecer há um falta de reconhecimento de determinadas vivências marcantes, há um vazio, uma falta de representação.
Winter (1997) afirma ainda que há uma impossibilidade de representar psiquicamente algumas perdas, como a de um ente querido, da saúde perfeita, de um membro, etc, podendo, daí, surgir uma desarticulação psico – soma. A doença, para ela, é um aglomerado de fatores.

Um desses fatores inclui toda a globalização subjetiva, que define a amplitude de estruturas psíquicas mais fragilizadas ou mais fortalecidas, no sentido do reconhecimento da própria identidade, com contornos definidos, com limites, de uma imagem corporal de acordo com esses mesmos limites (WINTER, 1997, p. 37).

Assim, Winter (1997) nos fala do paciente psicossomático, que têm uma estrutura psíquica relativamente frágil e que não suporta perdas, momentos conflitivos, apenas na dinâmica psíquica, mas coloca toda carga conflitiva no corpo. A autora afirma, no entanto, que embora algumas pessoas sejam assim, é quase impossível, mesmo para alguém que tenha sua estrutura psíquica relativamente saudável, passar uma vida sem adoecer, sem alucinar algumas vezes. A doença é, segundo a autora, e elucidando a visão psicanalítica, um processo pelo qual o paciente não consegue relacionar algum afeto à linguagem, de forma que este fica solto no psiquismo e gera uma tensão interior, descarregada fisiologicamente. Seria uma ruptura no processo de simbolização.
Tomando por base o que foi explanado, compreendo a necessidade de algumas questões ficarem em aberto, visto que falar sobre doença, como vimos, implica em entender como se dá o processo de adoecimento ao longo das décadas e como a doença é simbolizada nos diferentes contextos. Assim, vários estudos surgem a respeito da relação mente-corpo, da prática psicossomática e desta distância entre o biológico e o psicológico. Acredito que este assunto seja delicado principalmente pelo fato de o adoecer significar uma impotência diante da morte, diante do fato de que não podermos evitá-la, ou seja, coloca o indivíduo frente a questão de finitude do ser.
Neste sentido, na esperança de provocar novos e frutíferos debates, proponho algumas questões: O que é o adoecer nos nossos dias? Seria um processo de simbolização dos conflitos, dos complexos? Seria justamente ao contrário, a falta de simbolização, uma série de rupturas que nos afetam e nos fazem adoecer? Como integrar os aspectos biológicos e psicológicos nesta questão, sem reduzir a nenhum lado?

REFERÊNCIAS

JUNG, C. Gustav. Fundamentos de Psicologia Analítica. 11º edição: Editora Vozes. Petrópolis, 2003.
______________ O homem e seus símbolos. http://www.esnips.com/doc/db958820-aa4b-40ea-96d3-4b5a5e50b668/jung,-carl----o-homem-e-seus-s. Acessado em 09/09/2008
RAMOS, D. Gimenez. A Psique do corpo: uma compreensão simbólica da doença.São Paulo: Sumus, 1994.
WINTER, T. Regina. O enigma da doença: uma conversa à luz da psicossomática contemporânea. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.

Indicações de leitura
CONGER, J. P. Jung e Reich : o corpo como sombra. SP, Summus, 1993

DETHLEFSEN, T. & DAHLKE, R. A Doença como Caminho. SP, Cultrix, 1983

KEPPE, Norberto Rocha. A medicina da alma. 2 ª edição. Ed. Próton, 2004.
LELOUP, Jean-Yves. O Corpo e seus Símbolos. Petrópolis, Vozes, 1998

LESHAN, L. O câncer como ponto de mutação. SP, Summus Editorial, 1995

PARACELSO. A chave da alquimia.
RUBI, Paulo. As faces do humano: estudos de tipologia junguiana e psicossomática. SP, Oficina de Textos, 1998.

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