Thalita de Oliveira Soares
O texto a seguir é uma tentativa de discorrer, de maneira sucinta, sobre o desenvolvimento da criança sob a perspectiva da teoria analítica de C. G. Jung. O objetivo é mostrar uma parcela do que ocorre ao indivíduo no início de sua vida, quanto à estruturação de sua psique a partir de uma investigação da história da origem da consciência e dos estágios arquetípicos como etapas de seu desenvolvimento. Para tanto, será apresentado graus de consciência do ego que operam na psique da criança como parte de seu desenvolvimento psicológico e formação de sua personalidade.
Para a Psicologia Analítica Junguiana, a criança, ao nascer, encontra-se ainda em um estado psíquico no qual o ego se acha contido no inconsciente e, a personalidade e o Self, existem antes do ego tomar forma e desenvolver-se como centro da consciência. Conforme os estágios evolutivos, “o ego não apenas toma consciência da sua própria posição e a defende com heroísmo, mas também se torna capaz de ampliar e relativizar as suas experiências mediante modificações efetuadas pela sua própria atividade” (NEUMANN, 1995, p.25).
Assim, o desenvolvimento da estrutura psíquica no início da vida tem diferentes graus de consciência do ego, dependendo do estágio em que ela se encontra e das diferentes relações que o ego estabelece com os símbolos correspondentes aos estágios arquetípicos. A visão que o indivíduo tem do mundo sofre modificações a cada estágio do seu desenvolvimento, sendo as variações de arquétipos, símbolos, deuses e mitos, a expressão e o instrumento para essa mudança (NEUMANN, 1995).
A idéia não é apresentar aqui como ocorre a evolução destes estágios de forma detalhada, pois as leis que regem o desenvolvimento do ego e da consciência estão subordinadas ao inconsciente e à personalidade como um todo (Self), e para entendê-los de forma mais completa, seria necessário traçar todos os estados mitológicos e arquetípicos que acompanham o desenvolvimento da psique do homem afim de compreender a formação da personalidade. Quanto a isso, cabe apenas entender que estes estágios podem ser percebidos a partir de projeções mitológicas.
Além disso, “a natureza constitutiva desses estágios da psique vai se desvelando na seqüência histórica do desenvolvimento individual” (NEUMANN, 1995, p.194), bem como na seqüência histórica do desenvolvimento humano. O que torna a psicologia analítica distinta é seu avanço para além da esfera individual, penetrando na psicologia coletiva. Não há uma seqüência exata para cada estágio, pois deve-se considerar a história de cada nação e suas diferentes culturas as quais os indivíduos estão inseridos.
De acordo com Neumann (1995), a história só começa com um sujeito capaz de fazer experiências, ou seja, quando o ego e a consciência já existem. Em sua obra A Criança (1991), o autor diz que é nos primeiros meses de vida, que o ego da criança se forma ou ao menos começa a se desenvolver. Neste período, o núcleo do ego que se encontrava presente, cresce e adquire unidade, podendo-se referir a um ego infantil mais ou menos estruturado. A consciência do ego, embora tenha existência própria, ainda não se desprendeu e mal consegue se distinguir.
Este período é caracterizado pelo símbolo da uroboros, na qual a consciência do ego em evolução encontra-se sobre seu domínio. A uroboros é uma representação simbólica do estado inicial que mostra tanto a infância da humanidade, como a da criança. Ela opera como um estágio psíquico de existência anterior à formação de um ego, “sua realidade é reexperimentada em todo início de infância, e a experiência pessoal que a criança tem desse estágio pré-ego refaz a velha trilha percorrida pela humanidade” (NEUMANN, 1995, p.29).
Esta realidade é característica da relação primal da criança com sua mãe, também considerada extremamente importante na psicologia junguiana, pois se refere a uma experiência absoluta para a criança e a sua falta pode provocar distúrbios emocionais. Segundo Neumann (1991), “a relação primal é cósmica e transpessoal porque a criança não possui nem um ego estável nem uma imagem corporal delimitada” (p.13). Trata-se de uma realidade unitária na qual a criança encontra-se totalmente dependente da mãe que representa tanto o mundo como o Self.
Neste estado, o ser e o mundo circundante existem numa participation mystique (participação mística). A criança encontra-se ligada e unida à atitude psíquica dos pais, identificando-se com o inconsciente deles. Esta identidade primária (estado inconsciente e passivo) provém essencialmente do estado de inconsciência em que se encontra a criança pequena, que é tão carente de consciência como um homem primitivo:
Ainda não existe o “eu” claramente diferenciado do resto das coisas, mas tudo o que existe são acontecimentos ou ocorrências, que tanto podem pertencer a mim como a qualquer outro. É suficiente que alguém se sinta afetado ou tocado por isso. A extraordinária força contagiante das reações emocionais já se encarrega de que todos os que porventura se encontrem por perto sejam igualmente envolvidos. Quanto mais débil é a consciência do “eu”, tanto menos importa considerar quem propriamente foi afetado, e igualmente tanto menos está o indivíduo de se proteger-se contra o contágio geral. (...) Esta é a condição da criança na família. Ela se sente atingida na mesma medida e do mesmo modo que todo o grupo (JUNG, 1998, p.45).
Deste modo, as reações mais fortes sobre a criança não se originam do estado consciente dos pais, mas de seu fundo inconsciente. Não é de causar espanto se a maioria dos problemas e dificuldades verificados na infância surjam de perturbações na atmosfera psíquica dos pais. A existência em “participação mística” é existir na uroboros e isso significa também que não há um ego centralizado para relacionar o mundo consigo e para se relacionar com o mundo. A participação é reforçada pela falta de diferenciação do ego, que o enfraquece e o torna incapaz de se defender.
A criança só tende a se tornar ela mesma ao longo e fora da relação primal. Jung (1998) coloca que é nos primeiros anos de vida (por volta dos dois ou três anos) que a criança começa a tomar conta de si, ao dizer “eu”. Este processo mostra que a consciência está emergindo do inconsciente e se formando. Até os vinte anos, ocorre o maior e mais intenso desenvolvimento da consciência e, depois deste período, é sempre mais raro que novas partes da esfera inconsciente venham juntar-se à ela. Para Neumann (1995), o advento da consciência manifesta-se como luz em contraste com as trevas do inconsciente.
Nos diferentes estágios da consciência, a primeira coisa a ser descoberta é a realidade subjetiva, a formação do ego e a individualidade. A exaustão da uroboros indica que o indivíduo deve se libertar do “mundo de que já está “saturado” e encontrar-se a si mesmo. De acordo com Neumann (1995):
Só quando o ego experimenta a si mesmo como algo distinto e diferente do inconsciente, há superação do estágio embriônico e só então pode se formar um sistema, autônomo e baseado em si mesmo, da consciência (p.52).
Deste modo, o desapego da uroboros caracterizado pela entrada no mundo exterior e interior da humanidade e o encontro universal dos opostos está ligado a uma importante tendência do desenvolvimento: a autoformação (individuação na segunda metade da vida). Um novo estágio mitológico começa a partir do autoconhecimento como processo de conscientização. A autoformação, objetivo da vida e do desenvolvimento é tão necessário quanto a adaptação, pois promove o desenvolvimento do ego, da consciência, da personalidade e, por fim, da própria individualidade. Ela indica que o desenvolvimento do ego está se movimentando na direção do Self.
Segundo Neumann (1995), o alvo da vida agora é tornar-se independente do mundo, destacar-se e ter autonomia. Na criança, embora o ego e a consciência se preocupem principalmente com a adaptação, é possível encontrar a tendência à autoformação. Para o autor “estabilidade do ego, isto é, a sua capacidade de se manter firme diante das tendências desintegradoras do inconsciente e do mundo” (p.44-45), a qual se desenvolve muito cedo, juntamente com a extensão da consciência, é um requisito importante para a autoformação.
Portanto, o amadurecimento infantil é um processo que só surge à medida que a consciência do ego e a individualidade se desenvolvem, favorecendo o processo da individuação que, em geral, é o processo de formação e particularização do ser individual, distinto do coletivo. Porém, para Jung apud Fordhan (2001), “antes de tomá-la como objetivo, é preciso que tenha sido alcançada a finalidade educativa de adaptação ao mínimo necessário de normas coletivas” (p.18).
Assim, a individuação é entendida como sendo uma meta oposta à infância, parecendo deixar este processo em segundo plano. Isto ocorre porque antes há uma necessidade vital para a criança de estruturar seu ego. Por isso, a importância da educação, como adaptação ou integração do ego no desenvolvimento da personalidade. Fordham (2001) salienta que Jung deu sempre muita importância ao desenvolvimento e, como já foi dito anteriormente, o objetivo do desenvolvimento de uma criança é atingir a maturidade, só que para isso, “ela precisa fortalecer seu ego de modo a poder controlar seu mundo interior e exterior” (p. 17).
CONCLUSÃO
Discorrer sobre o desenvolvimento da estrutura psíquica da criança e a formação de sua personalidade com base na Psicologia Analítica de C. G. Jung é sempre um grande desafio, visto que estudar e compreender os estágios evolutivos através de uma realidade mitológica, que é de extrema importância para a psicologia junguiana, permite deparar-se com conceitos que por vezes apresentam-se de forma bastante complexas. Essa forma de entender o desenvolvimento não tem apenas importância teórica, mas, principalmente para a prática da psicoterapia.
Para a psicologia junguiana, o que chama atenção a respeito do desenvolvimento, é que não há para ela, uma época histórica para cada estágio. Por este aspecto, conclui-se que o desenvolvimento é tão individual que não há como determinar fases e, no trabalho psicoterapêutico faz-se necessário relacionar as projeções mitológicas dos estágios arquetípicos para entender suas significações psicológicas para o desenvolvimento e formação da personalidade.
O foco do texto foi no desenvolvimento infantil normal, por isso foi dado mais ênfase aos processos psíquicos deste período e ao estágio (mitológico) da uroboros, visto que os posteriores abarcam já as questões do indivíduo na adolescência. Não é surpresa que muito dos problemas que podem surgir à criança, estão relacionados principalmente ao modo de vida dos pais que é projetado nela, por isso a importância de se fazer um trabalho conjunto com os mesmos.
O desenvolvimento da personalidade e individualidade no período da infância é tão vital que no trabalho psicoterapêutico com a criança deve haver um auxílio ao processo de estruturação do ego e conscientização. Neste sentido, a educação à criança pequena torna-se um meio bastante apropriado, servindo de apoio a este processo até que ela tenha melhores condições de trilhar seu próprio caminho. Não deve-se entender a educação aqui, como impor à criança normas e padrões socialmente aceitos que neguem sua individualidade, mas mostrar que há coisas no mundo que não dependem somente dela ou de suas vontades.
REFERÊNCIAS
FORDHAM, Michael. A criança como indivíduo. São Paulo: Cultrix, 2001.
JUNG, C. G. O desenvolvimento da personalidade. Petrópolis: Vozes, 1998.
NEUMANN, E. A criança: estrutura e dinâmica da personalidade em desenvolvimento desde o início de sua formação. São Paulo: Cultrix, 1991.
NEUMANN, E. História da origem da consciência. São Paulo: Cultrix, 1995.
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