quinta-feira, 31 de março de 2011

SOBRE UMA VAMPIRA


Mauro Sérgio Da Rocha

Em outros momentos, neste mesmo espaço, apontamos algumas possibilidades de leitura e trabalho com HQs. Seguindo esta perspectiva e tentando caminhar em direção a um conhecimento que possa nos apresentar propostas diferenciadas de trabalho dentro da perspectiva analítica, buscamos perceber mitologemas. É isto que esperamos com estes pequenos comentários: fornecer caminhos imaginativos àqueles que apreciam o mundo das HQs, sobretudo dos apreciadores de X-Men.
Convidamos você leitor a fazer uma reflexão usando como pano de fundo a personagem Vampira, dos X-Men, e sobre as implicações de seus poderes mutantes. Primeiro, um pouco de história.
Anna Marie, possui o codinome Vampira (nas publicações nacionais) por “pegar” memórias e poderes de quem ela toca, de quem tem contato com sua pele. Dessa forma, o menor contato faz com que uma parcela da pessoa tocada passe a ser utilizada e integrada à personalidade de nossa heroína. Também devido a isso, quanto maior o contato maior a energia retirada e integrada.
Uma habilidade interessante, de certo modo. Haja vista que se consegue, através desta habilidade, interagir com o mundo do outro da forma mais verdadeira possível. Ou seja, eu me torno um pouco do outro. Imagine saber dos segredos, memórias, experiências, projetos, intenções, etc., de uma outra pessoa apenas com um toque.
Todavia, quando nos tornamos um pouco do outro, o que ocorre comigo, com o eu individual? Em um caso ele, o eu, pode buscar a integração de conteúdos, em outro... É a partir disso que começam as complicações.
Dentro do que podemos observar em Vampira, o eu começa a se desfragmentar. É como se ele disputasse espaço com um outro eu, um conteúdo estranho vindo de fora da psique individual. Esta sequencia pode levar ao ponto de o eu individual começar a vivenciar coisas através de um eu emprestado, tomado como necessário e ideal. Podemos fazer referência aqui ao que Jung chama de participação mística, na qual “o sujeito não consegue distinguir-se claramente do objeto, mas por ele está ligado por relação direta que poderíamos chamar identidade parcial. Esta identidade se baseia numa unicidade apriorística de objeto e sujeito”. (JUNG, Tipos psicológicos, § 871).
Verificamos, a partir do histórico da personagem, que ela é muito do que é graças a Carol Danvers, a Miss Marvel. Isso ocorreu em um encontro que fez com que Vampira “pegasse” praticamente toda a energia de Carol. Enquanto uma saiu superpoderosa, à outra restou uma condição comatosa. Neste caso, especificamente, Vampira retira praticamente toda a força vital de Carol e, consequentemente, também adquire suas vivências, sua personalidade.
O que acontece após esse fato é visto em uma Vampira que começa a transitar entre uma e outra personalidade. Ela já não consegue identificar o que ela faz por ela mesma ou pela influência de uma outra. Esse processo ocorre sem que ela realmente perceba. Há uma normalidade até o ponto em que começa uma briga entre sua individualidade e o conteúdo adquirido.
Mas não fiquemos aqui apenas neste fato. Durante toda a trajetória da personagem ela “pegou emprestado” os poderes e memórias de várias pessoas. Ela se misturou a essas pessoas. Em alguns casos ela se tornou essas pessoas.
Tudo isso colaborou para que Vampira começasse a se perguntar quem realmente ela era. Quais eram suas características mais profundas? O que a diferenciava do resto da humanidade? Afinal, ela estava imersa em um sem número de vivências. É como se o eu mergulhasse num mar de possibilidades e se perdesse enquanto uno.  Uma imagem esquizo, talvez, daria uma dimensão mais próxima da realidade desse processo.
É dentro deste emaranhado de personalidades emprestadas que Vampira percebe uma possibilidade de se encontrar e decide se preservar e recuperar seu eu individual. Neste aspecto, há ainda algumas condições do complexo do eu preservadas que a leva a se apegar a essa possível estruturação. Ela se retira da cena, busca a solidão para decidir o que é seu, o que é do outro e ter condições de escolher a integração de conteúdos. Isto nos remete a outras imagens de personalidades que se “ausentam” da realidade comum e fazem uma peregrinação à “outros mundos” a fim de estruturar e conciliar partes da sua individualidade.
Esse processo gera bom frutos à Vampira. Quando ela retorna ao grupo (também uma re-integração) ela consegue, inclusive, dominar sua habilidade. Ela está pronta para novas relações, seu eu está estruturado e fortalecido. Sabendo quem é (conhecendo suas capacidades e dificuldades), ela corre pouco risco de se misturar e se perder.
Talvez Vampira nos apresente apenas a necessidade de um cuidado quando “pegamos” algo de alguém. Um cuidado que deve ser recebido e utilizado quando me coloco como observador de meus conteúdos. São meus? Como me utilizo deles?
Talvez Vampira seja uma versão estilizada do processo de individuação. Pegou coisas emprestadas para suportar momentos e com isso, aos poucos, foi criando sua forma una de ser.
Ou talvez Vampira apenas seja algo. E essas nossas reflexões meras idéias erroneamente pontuadas sobre um evento.
Seguindo um ou outro caminho, as idéias aqui apresentadas não possuem a intenção de serem verdades absolutas, travas de movimentos. Muito mais há a ser questionado sobre nossa heroína. Todavia, a troca e o conhecimento só se tornam válidos e vivos quando experienciados.

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